Tschandala e idiotia. Nietzsche e o judaísmo como mundo privado

 

Allan Davy Santo Sena [1]

 

A leitura de Julius Wellhausen [2], Charles Féré [3] e, posteriormente, de Léon Tolstói [4], conduziu Nietzsche à noção de que o mundo do judaísmo sacerdotal, da sociedade Palestina da diáspora, é um mundo que se encontra fora da esfera política, um mundo privado, um mundo propício a proliferação de seres degenerados. Jesus não é o único idiota que habitou neste mundo. Na seção 26 de O Anticristo, Nietzsche faz referência à “idiota fórmula” do judaísmo sacerdotal de “obediência ou desobediência” a Deus, ou seja, uma fórmula que só faz sentido em um mundo retirado, abstrato, privado. Na seção 42, Nietzsche afirma que aquilo que o próprio Paulo não acreditava, “acreditavam os idiotas aos quais ele lançou a sua doutrina”. No fragmento póstumo 14 [90] da primavera de 1888, Nietzsche inclui entre as espécies que são atraídas pelo anêmico santo de Nazaré, e que eram extremamente familiares a Dostoiévski, os “comovidos, arruinados e perturbados abortos, com idiotismo” [rührende, verderbte und verdrehte Mißgeburten mit Idiotismus]. E, na seção 31 de O Anticristo, fazendo referência aos romances russos, Nietzsche fala do mundo “peculiar e doente” para o qual os Evangelhos nos transportam, em que as “doenças nervosas e o idiotismo infantil” se encontram. Em seus últimos escritos, Nietzsche parece indicar, deste modo, que o próprio mundo que cercava Jesus era um mundo da idiotia, isto é, um mundo degenerado, interrompido, no qual a não resistência surge como principal medida de conservação, um mundo que se mostra incapaz de lutar, um mundo retirado da esfera política. Jesus não é o único idiota que se pode diagnosticar nos Evangelhos, ele é somente o idiota mais especial, aquele que conseguiu encontrar, instintualmente, o caminho para a sua salvação e para aqueles fisiologicamente semelhantes a ele, tal salvação só pode significar aqui a maneira com que essa determinada forma de vida pode alcançar a sua suprema beatitude, que consiste justamente em aceitar-se enquanto tal e não evitar o seu fim. A idiotia de Jesus não é um caso isolado na Palestina de sua época, o judaísmo da diáspora condiciona a profusão de todo o tipo de degenerescência, inclusive a idiotia, que se torna bastante comum nesse ambiente. A idiotia de Jesus é fisio-culturalmente condicionada, não é mero acaso, um golpe do destino, mas algo previsível sob tais condições e, até mesmo, inevitável. [5]

No fragmento póstumo 11 [280] de novembro de 1887 a março de 1888, que delimita o momento em que Nietzsche começa a fazer uso dos resultados obtidos com a leitura de Tolstói, ou seja, exibindo não unicamente extratos e resumos de Ma religion, mas tentativas interpretativas propriamente nietzschianas sobre as questões levantadas nessa obra, o filósofo se refere a Jesus como um santo anarquista. Sua morte não representou a “redenção dos pecados” da humanidade, foi o seu próprio “pecado” que o levou à cruz. Jesus foi “um criminoso político na medida em que um crime político possa ainda ser concebido sob tais circunstâncias”. Com base em Tolstói, Nietzsche passa a considerar o caráter apolítico da mensagem evangélica de Jesus como sendo seu atributo fundamental. Como, então, é possível chamá-lo de santo anarquista? Do mesmo modo que se poderia afirmar que um crime político pudesse ter lugar no interior do judaísmo sacerdotal, ou seja, de um modo absolutamente deslocado. Jesus é um santo anarquista, mas no sentido em que o Estado, em que o Império conseguiu visualizá-lo, conseguiu julgá-lo. Império Romano e Judéia habitam mundos completamente distantes um do outro. Na colisão destes mundos, Jesus e seus correligionários só puderem ser “introduzidos” na esfera estatal mediante as noções de “desordeiros”, “agitadores”, “rebeldes”, isto é, como “criminosos”. No mundo judaico essas noções não fazem o menor sentido, e ainda menos no mundo em que Jesus habitou. O fragmento 11 [280] é um preparatório da seção 27 de O Anticristo, neste último, a dificuldade de ordem discursiva acerca de como falar sobre os motivos e os argumentos que levaram à condenação de Jesus fica ainda mais acentuada, como se pode perceber no modo como o filósofo modifica o final da sentença supracitada: “[Jesus] foi um criminoso político, na medida em que criminosos políticos eram possíveis numa comunidade absurdamente apolítica.” O judaísmo sacerdotal nada entendia das relações práticas da vida, das questões ligadas aos negócios públicos, mas tão somente de questões “espirituais”, religiosas, morais, abstratas, antinaturais, irreais. Dessa forma, apenas de um modo, por assim dizer, figurativo, relativo, provisório, por intermédio de uma espécie de suspensão do real, é que se pode falar de um tal mundo como pertencente a qualquer esfera política, mas nunca de acordo com a realidade. De igual maneira, Jesus, apenas de modo figurativo, relativo, provisório, pode ser tomado como um santo anarquista, pois sua prática resulta de uma necessidade absolutamente deslocada de toda e qualquer esfera política, inclusive, e principalmente, de uma posição anti-política, em outras palavras, de um ato consciente e voluntário de retirada da política ou de abolição da política pelos seus fundamentos, de um anarquismo no exato sentido político da palavra.

No fragmento póstumo 9 [50] do outono de 1887, provavelmente resultado da leitura de Wellhausen, e que ainda faz parte do antigo esboço da “Vontade de poder”, Nietzsche já afirma que no mundo do judaísmo sacerdotal não há a mínima consciência de que possam existir coisas autenticamente espirituais, ou seja, uma cultura: “a palavra ‘espírito’ não se acha jamais aqui a não ser como mal-entendido: aquilo que todo o mundo nomeia ‘espírito’ é sempre para esse povo ainda ‘carne’”. Isto é, as coisas ditas “espirituais” no mundo judaico não passam de irrealidades, não possuem ligação com os verdadeiros objetos espirituais, isto é, com o mundo da cultura. Nietzsche fará exatamente esta mesma observação a respeito da compleição fisio-psicológica de Jesus na seção 29 de O Anticristo, ao rejeitar a noção de “gênio” utilizada por Ernest Renan [6] para explicar seu Jesus histórico. O conceito de espírito, de cultura, de ciência, de arte, não tem qualquer significado no mundo judaico, e o mesmo no que se refere ao mundo de Jesus. Isso não significa que o movimento que ensejou a criação do código sacerdotal resulte das mesmas necessidades fisiológicas representadas por Jesus, ou seja, da idiotia, mas apenas que o mundo que esse código gerou, que o tipo de vida que esse código condicionou, isto é, a sociedade Palestina da época de Jesus, é um mundo privado, apolítico, um mundo em que a degenerescência deve necessariamente proliferar, um mundo da idiotia. [7] No fragmento póstumo 10 [135] do outono de 1887, antes, portanto, que o projeto de uma psicologia do redentor adquirisse seus contornos mais precisos (antes da leitura de Tolstói), Nietzsche já parece falar de um cristianismo mais original, uma forma de vida privada e não ressentida condicionada por certos tipos de ambientes retirados da política. Esse cristianismo original depõe contra a total falta de asseio intelectual do cristianismo professado pelo homem moderno, esse “aborto de falsidade” [8], contra a sua impudente desonestidade para consigo mesmo, para com sua consciência:

O cristianismo é possível como a mais privada forma de existência [privateste Daseinsform]: ele supõe uma sociedade estreita, retirada, absolutamente não política – ele pertence ao conventículo. Em contrapartida um “Estado cristão”, uma “política cristã” – não são mais do que palavras de ação de graças [Dank-Gebets-Worte] em bocas do tipo que têm razões para produzir palavras de ação de graças. Que estes venham a falar de “Deus dos exércitos” enquanto chefe de Estado maior – eis o que não engana ninguém. O príncipe cristão, ele também pratica a política de Maquiavel: à condição de que ele não faça má política.

Mas é no fragmento póstumo 10 [157] do outono de 1887, que o caráter apolítico da sociedade judia da diáspora é discutido mais detidamente. A tese de que o judaísmo introduz uma noção de moral como antinatureza [9], como irrealidade, é demonstrada por Nietzsche mediante o seguinte argumento: toda lei, isto é, toda noção mundana, autenticamente política, de um código legislativo civil, é estabelecida de acordo com as necessidades impostas pela ordem natural das coisas, da naturalidade, da realidade. É com vistas à conservação de uma comunidade que certas ações são coibidas e desestimuladas, não porque o estado de espírito da qual se originaram possa ser de algum modo tido como absolutamente condenável em si, mas sim porque tais ações são perigosas e indesejáveis sempre que elas estiverem voltadas contra a comunidade. Com isso, não se quer de maneira alguma interditar a possibilidade de que o estado de espírito que enseja tais ações seja estimulado para o auxílio da comunidade, notadamente contra seus inimigos. Contudo, a moral do idealismo concebe a noção de que o estado de espírito do qual resultam tais ações é em si mesmo condenável, com isso, a lei é castrada [10], perde sua necessidade natural, seu apego às exigências práticas da vida. Todavia, como diz Nietzsche, “é somente nos casos de exceção em que uma comunidade vive absolutamente fora de todo constrangimento a fazer guerra por sua existência que se prega aos ouvidos semelhante coisa”. [11] Por diversas circunstâncias singulares de sua história, a sociedade judaica da diáspora havia se tornado uma sociedade eminentemente parasitária, fora de toda preocupação política. Para Nietzsche, o cristianismo só poderia germinar em um tal solo:

Esse foi o caso igualmente da primeira comunidade cristã (também da comunidade judaica), da qual a condição prévia foi o caráter absolutamente apolítico da sociedade judaica. O cristianismo não poderia crescer senão sobre o terreno do judaísmo, ou seja, no seio de um povo que já havia renunciado a sua existência política e que não levava mais do que um tipo de existência parasitária no interior da ordem romana. O cristianismo é um passo adiante nesse sentido: tem-se o direto de se “emascular” ainda mais – as circunstâncias o permitem. [12]

Embora, na passagem acima, Nietzsche não esteja se referindo exatamente a Jesus, mas sim ao cristianismo como sendo fruto do judaísmo, pode-se dizer que tal sociedade também representava um ambiente propício para que o nascimento de um tipo idiota viesse a ocorrer, ou seja, um mundo formado por um ajuntamento de seres degenerados de toda espécie. No fragmento póstumo 11 [363] de novembro de 1887 a março de 1888, que consideramos decisivo para o esclarecimento do valor que se deve conferir à mensagem original de Jesus no interior de O Anticristo, Nietzsche se pergunta: essa mensagem, essa prática de vida, esse ideal representado por Jesus é realizável?

Sim, mas climaticamente condicionado... semelhante ao ideal hindu... falta o trabalho... livre de todo apego ao povo, ao Estado, a comunidade de cultura, a jurisdição, ele rejeita a instrução, o saber, a educação das boas maneiras, o ganho, o comércio... ele liquida tudo o que constitui a utilidade e o valor do homem – encerrado em uma idiossincrasia de sentimento – apolítico, antinacional, nem agressivo, nem defensivo, – possível somente no interior de uma sólida organização da vida social e do Estado, que deixa pulular esses santos parasitas às custas da comunidade...

Há, nessa importante passagem, um complexo cruzamento dos resultados obtidos com pelo menos três fontes diferentes: Féré, Tolstói e Louis Jacolliot. Nietzsche fará uma aproximação da figura do santo com a figura do criminoso analisada por Féré em Dégénéréscence et criminalité. [13] Para Nietzsche, é movida pelos mesmos instintos de conservação que dá origem à criminalidade que a sociedade judaica elege a vida do santo como ideal. Tal como o criminoso, o santo é uma parasita da sociedade. Devido a sua hiperexcitabilidade e ao seu esgotamento, os sujeitos degenerados se vêem impossibilitados de continuarem na luta pela existência, mostrando-se igualmente incapazes de um esforço contínuo, inábeis para o trabalho, tomados pela preguiça, e, por conseguinte, dependentes do trabalho alheio. Enquanto “povo santo”, a sociedade judaica representa uma sociedade essencialmente formada por sujeitos degenerados. Esse povo consegue ser santo, ou seja, parasitário porque vive à custa do Império. [14] Com Tolstói, Nietzsche viu a possibilidade psicológica de um ambiente em que toda posse, todo cuidado de si, toda defesa de um território, de uma comunidade, se vê esvaziada de sentido, de necessidade, um mundo absolutamente privado. Já a referência ao ideal hindu provém diretamente do sistema de castas propalado pelo chamado Código de Manu, que estabelece como necessidade natural a existência de um grupo desvinculado desse sistema, que se encontra ao mesmo tempo abaixo e fora da hierarquia, a saber, o grupo dos sem casta, a tschandala.

Nietzsche entrou em contato com o Código de Manu por intermédio da obra Les législateurs religieux: Manou-Moïse - Mahomet, de Louis Jacolliot [15], primeira e única parte de uma planejada coleção que permaneceu inacabada sobre códigos legislativos religiosos da Antiguidade e do início da Idade Média. Les législateurs religieux contém uma pretensa tradução “crítica” do Mānava-dharma-s̊āstra, um importante código de leis do hinduísmo em sânscrito clássico. Apesar de sua alegada antiguidade, que remontaria a quase seis mil anos antes de nossa era, o Manu-smrti, como também é conhecido, foi escrito provavelmente no primeiro século de nossa era, sendo bem posterior ao Vedas. A autoria do livro é desconhecida, embora se queira atribuí-la a Manu, uma figura mítica, pai da raça humana, sobrevivente do Dilúvio. O Código de Manu pode ser considerado um S̊āstra, um “manual”, cujo tema é o Dharma, a “lei natural”. Ele trata das regras básicas da vida diária e da ordem social, lidando com temas como os direitos e deveres pertencentes a cada uma das castas, iniciação, casamento, hospitalidade, restrições alimentares, a conduta da mulher, etc.

A tradução do Código de Manu feita por Jacolliot foi lida por Nietzsche em maio de 1888, provocando no filósofo um enorme entusiasmo, na verdade, como declarou Colli, “uma grande e mesmo exagerada impressão sobre ele” [16], como se pode constatar em uma quantidade expressiva de extratos, comentários da obra e críticas ao Código de Manu presente nos fragmentos póstumos da primavera de 1888 [17], assim como nas seções 55 a 57 de O Anticristo, em “Os ‘melhoradores’ da humanidade” de Crepúsculo dos ídolos, bem como no exemplar pessoal de Nietzsche de Les législateurs religieux, conservado na Biblioteca Herzogin Anna Amalia de Weimar [18], que apresenta uma grande quantidade de traços de leitura, e, por fim, em uma carta a Peter Gast de 31 de maio de 1888:

Devo a estas últimas semanas uma lição essencial: encontrei o Código de Manu em uma tradução francesa feita na Índia sob o controle rigoroso dos mais eminentes sacerdotes e especialistas de lá. Este produto absolutamente ariano, um código sacerdotal de moral baseado no Vedas, na noção de castas, e de proveniência muito antiga – não pessimista, ainda que sempre muito sacerdotal – complementa minhas representações sobre religião de maneira extraordinária. [19]

A visão de uma sociedade dividida entre quatro castas, a saber, sacerdotes (brâmanes), guerreiros (os ksatriyas), agricultores e comerciantes (Vaisyas), e servos (sudras), além de um grupo formado por aqueles que foram proscritos, expulsos dessa hierarquia juntamente com os seus descendentes (tschandala), presente no Código de Manu, despertou bastante interesse por parte de Nietzsche, tornando-se um elemento fundamental em sua crítica ao cristianismo. Segundo o filósofo: “Respira-se aliviado, quando se deixa o ar cristão de doença e masmorra e se adentra esse mundo mais são, mais elevado, mais amplo. Quão miserável é o Novo Testamento ao lado de Manu, como cheira mal!” [20] Para Nietzsche, o Código de Manu mente como toda moral, como tudo o que é sacerdotal, porém, para o filósofo, pouco importa que se minta, mas sim com que finalidade. O código de Manu representa uma pia fraus, uma “mentira sagrada”, que não ameaça a vida, mas a promove.[21] O código de Manu mente, mas com uma finalidade salutar, louvável, nobre, a saber: o cultivo de uma determinada espécie de homem, uma espécie nobre, mais elevada. O cristianismo, em contrapartida, mente com a finalidade de amansar a besta, para isso, quer alquebrar o homem, torná-lo doente, miserável, lastimável. [22] “Cultivo” e “amansamento”, somente esses termos zoológicos exprimem a realidade por trás das intenções dos “melhoradores”: impor determinada condição de existência a um animal, ter controle sobre sua constituição fisiológica. Por mais que o Código de Manu não corresponda propriamente à concepção política de Nietzsche, além de contrariar sua noção de que se deve buscar sempre a criação de novos valores, tendo em vista que semelhante código evita o experimento, “conclui nada mais cria” [23], ele representa, para o filósofo, por outro lado, um importante recurso, um artifício, uma arma na denúncia da moral cristã como antinatural e negadora da vida. Uma legislação, uma moral, cuja finalidade é “‘eternizar’ a suprema condição para que a vida prospere” [24], que não nega as condições naturais de efetivação da vida, precisa ser contraposta ao cristianismo para que seu caráter deletério, venenoso, prejudicial à vida fique ainda mais evidenciado. [25]

Dois trabalhos fundamentais estabeleceram que a leitura do Código de Manu por intermédio de Jacolliot feita por Nietzsche acabou, talvez, por comprometer seriamente a própria legitimidade de seus argumentos. [26] Em “Nietzsche und das Gesetzbuch des Manu” [27], Annemarie Etter mostrou que a obra de Jacolliot nada tem de “crítica”, e muito menos resultou de um “controle rigoroso” como afirmou Nietzsche em sua carta a Peter Gast, mas que não passa de um trabalho pseudo-científico, que contém graves erros editoriais e de tradução. A obra corresponde apenas a uma das muitas versões disponíveis do Código de Manu, com inserções arbitrárias de Jacolliot, na forma de observações e notas, que não se encontram em nenhuma das versões do código, mas em textos de natureza bem diferente. Segundo Etter, Jacolliot estava longe de ser um dos maiores especialistas em hinduísmo como quis acreditar Nietzsche, mas somente um estudioso entusiasmado das tradições hindu que acreditava que toda a cultura humana teve origem na Índia. Em “Manu as a Weapon against Egalitarianism”[28], Koenraad Elst esclareceu, por sua vez, que o problema vai muito além das imperfeições filológicas contidas na versão do Código de Manu presente na obra de Jacolliot, pois, fora essa questão, há ainda três fontes de distorção na concepção de Nietzsche sobre o sistema de castas indiano: o Código de Manu em si, uma teoria sobre a tschandala que Jacolliot desenvolve em uma de suas notas, e a própria visão que Nietzsche irá elaborar sobre o tema. De acordo com Elst, a forma como o Código de Manu interpreta o Vedas é vista como equivocada mesmo entre estudiosos indianos, e a maneira como esse código apresenta o sistema de castas não pode ser certificada como historicamente védica. Além disso, apesar de ter sido muito influente, esse código nunca exerceu o poder de um código civil tal como se entende no ocidente, possuindo apenas uma função orientadora. Mas, para Elst, é sobretudo em uma longuíssima nota escrita por Jacolliot que reside o principal motivo de Nietzsche ter desenvolvido uma visão errônea do sistema de castas indiano e da tschandala. [29] A nota surge após a seguinte passagem: « Le brahme qui épouse une soudra est dégradé sur-le-champ, et il rabaisse sa famille à la condition servile. Il est rejeté parmi les tchandalas ou gens des classes mêlées. » O intuito da nota é, ao mesmo tempo, esclarecer melhor a extensão do conceito de tschandala e expor a tese de que a as religiões do sudoeste asiático se originaram como resultado de emigrações de populações tschandalas. Como propõe Jacolliot no início de sua nota: « Cette expression de tchandala se rencontre si souvent dans Manou que nous croyons utile de donner quelques explications sur ces gens des classes mêlées et le chemin parcouru par quelques-unes de leurs migrations les plus curieuses, émigrations sur lesquelles nous nous fondons pour donner à la Chaldéo-Babylonie l’Inde pour ancêtre » [30] De acordo com Elst, Nietzsche se mantém apenas parcialmente interessado no Código de Manu em si, seu principal objeto de interesse é mesmo a nota de Jacolliot e sua tese, segundo Elst,  “cientificamente insustentável” e alimentada por seu anti-semitismo, de que os judeus descendem diretamente da tschandala indiana. Como se atesta na seção “Os ‘melhoradores’ da humanidade” em Crepúsculo dos ídolos, em que Nietzsche cita dois editos, um lançado, como esclarece Jacolliot [31], a “oito mil anos” antes de nossa era, pelo artaxchatria, “grande rei”, Pratichta, e o outro, a “seis mil anos” antes de nossa era (essas datações são muito provavelmente míticas), pelo artaxchatria Agastya, que exemplificam, segundo o filósofo, as terríveis “medidas de proteção” que o Código de Manu estabelece contra a tschandala, porém, tais editos não se encontram em nenhuma das versões desse código, mas foram retirados por Jacolliot de um texto chamado Avadana-Sastra, uma coleção de relatos históricos. [32]

Jacolliot acredita que os tschandalas, ao longo do tempo, acabaram por se tornar uma nação dentro da própria nação. Por conta disso, a cerca de 8.000 anos antes de nossa era, foi emitido o primeiro decreto citado por Nietzsche em Crepúsculo dos Ídolos. Medida que teria reduzido o número de tschandalas pela metade. Entretanto, eles lentamente se recuperaram e voltaram a prosperar. Por isso, a cerca de 6.000 anos antes de nossa era, um novo decreto foi emitido, resultando em uma nova redução de seu número, seguida, anos depois, porém, de uma nova recuperação. Até que, por volta de 4.000 anos A.C., por conta do combate entre brâmanes e budistas, eles voltaram a ser perseguidos e se viram forçados a emigrar. Deslocando-se para o oeste asiático, especialmente para Sind (Paquistão) e Pérsia, como relata o Avadana-Sastra, dirigindo-se depois, como acredita Jacolliot, para as margens do Eufrates e do Tigre[33]. Os caldeus, assírios, babilônios, sírios, fenícios e árabes seriam, portanto, somente os descendentes de várias tribos tschandalas que emigraram da Índia em diferentes momentos, os hebreus seriam, por sua vez, uma emigração dos caldeus. Assim, todos os chamados semitas seriam oriundos da tschandala, daí seu hábito de escrever com a mão esquerda, a adoção da prática da circuncisão, o modo de vida nômade, etc. Jacolliot defende que seus costumes e comportamentos baixos, como, por exemplo, aqueles praticados em Sodoma e Gomorra, raros entre nações européias, são uma herança de sua escravidão. Por outro lado, o Ocidente, o Egito Antigo, teria sido povoado pela emigração de castas hindus mais elevadas, por isso seu costume de se alimentar e escrever com a mão direita, a complexidade de seu culto e de suas tradições, etc.[34] Devido ao fato de serem oriundos da tschandala, os semitas nunca puderem alcançar, de acordo com Jacolliot, o verdadeiro e elevado significado das concepções religiosas de seus mestres, elaborando somente uma imitação dos elementos exteriores do culto bramânico que eles associaram com suas próprias idéias vulgares:

Les prétendus Sémites, eux-mêmes, furent si bien des esclaves tchandalas émigrés qu’ils ne purent jamais s’élever au-dessus des conceptions vulgaires qu’ils avaient emportées de la mère-patrie. Les tchandalas ignorants n’avaient guère vu dans le culte indou que les manifestations extérieures abandonnées à la plèbe, rien dans ce que nous ont laissé les Chaldéens, leurs descendants, ne prouve que sur le terrain religieux ils se soient élevés aux croyances philosophiques et spirituelles des brahmes. [35]

A maneira como Nietzsche faz uso, em Crepúsculo dos Ídolos, das prescrições que o “Código de Manu” impôs à tschandala – ou melhor, dos editos que Jacolliot encontrou no Avadana-Sastra – e da teoria de que os judeus descendem da tschandala, mostra que seu interesse em tal teoria está diretamente relacionado com sua crítica ao cristianismo, aparecendo muito mais como uma forma de denunciar a proveniência dessa religião a partir do solo do ressentimento judaico, interpretado agora pelo víeis do que ele vai denominar de pessimismo da indignação, prerrogativa de toda tschandala [36], afastando-se, portanto, do anti-semitismo de Jacolliot:

Essas disposições são muito instrutivas: nelas temos a humanidade ariana, totalmente pura, totalmente primordial – vemos que o conceito de “sangue puro” é o oposto de um conceito inócuo. Por outro lado, torna-se claro em qual povo se eternizou o ódio, o ódio de tschandala a essa “humanidade”, onde ele se tornou religião, onde se tornou gênio... Desse ponto de vista os Evangelhos são um documento de primeira ordem; e mais ainda o livro de Enoque. – O cristianismo, de raiz judaica e compreensível apenas como produto deste solo, representa o movimento oposto a toda moral do cultivo, da raça, do privilégio: – é a religião antiariana par excellence: o cristianismo, a transvaloração de todos os valores arianos, o triunfo dos valores tschandalas, o Evangelho pregado aos pobres, aos baixos, a revolta geral de todos os pisoteados, miseráveis, malogrados e desfavorecidos contra a “raça” – a imorredoura vingança da tschandala como religião do amor... [37]

Não obstante, ainda permanece a questão de saber exatamente até que ponto Nietzsche levou a sério a teoria de Jacolliot. Etter chama atenção para o fato de que a tradução do Código de Manu feita por Jacolliot não era de modo algum a única e muito menos a melhor disponível em uma língua européia. Dois anos antes da publicação da tradução de Jacolliot, uma versão em inglês feita por George Buehler, que ainda hoje é utilizada, havia saído, e uma de William Jones já havia sido publicada em 1796; em francês, uma tradução de Auguste Loiseleur Deslongchamp havia sido publicada já em 1833; além disso, a tradução de William Jones foi vertida para o alemão dois anos após sua publicação. Ademais, ainda que seu amigo Paul Deussen, professor de filosofia indiana, e seu ex-colega de Schulpforta, Ernst Windisch, professor de sânscrito em Leipzig, não fossem verdadeiros especialistas em Dharma-s̊āstras, eles poderiam facilmente identificar a verdadeira natureza do trabalho de Jacolliot, ou seja, uma publicação pseudo-científica, contendo grosseiras e enganosas conclusões baseadas em suposições completamente arbitrárias. É, pois, surpreendente, argumenta Etter, que Nietzsche não tenha se dado ao trabalho de consultá-los sobre tal questão, uma vez que sua competência enquanto filólogo deveria tê-lo alertado para o caráter amadorista do trabalho de Jacolliot. A preferência de Nietzsche pela tradução de Jacolliot, declara por sua vez Elst, constitui um verdadeiro mistério. Segundo ele, esse estranho erro de julgamento por parte de Nietzsche permanece inexplicado, o que ainda é melhor do que vê-lo simplesmente como um pródromo de sua perda de sanidade ocorrida um ano depois.

Nossa hipótese é de que o entusiasmo de Nietzsche pela obra de Jacolliot está diretamente relacionado com o que ele próprio declara em sua carta a Peter Gast de 31 de maio de 1888, a saber, esse “Código de Manu” representava uma complementação de suas concepções sobre a religião, em particular, sobre o cristianismo. É possível perceber na forma como se dá a recepção da obra de Jacolliot nos escritos de Nietzsche, ou seja, na maneira como o filósofo se apropria das opiniões do estudioso, que tais opiniões lhe serviram como confirmações de diversos argumentos que ele havia elaborado na tentativa de realizar uma fisiologia da moral e da religião. A visão proposta por Jacolliot do sistema de castas indiano constituía uma grande complementação ou corroboração sobretudo dos resultados que Nietzsche obteve com a leitura de Féré. O que o “Código de Manu” apresenta é a naturalidade da décadence, da degenerescência fisiológica de todo organismo vital, de toda civilização, bem como a necessidade de que essa degenerescência alcance o seu devido termo, isto é, sua dissolução; tanto o fenômeno da degenerescência quanto o seu fim natural são condições de efetivação da vida. Teria Nietzsche de fato aceitado a teoria de Jacoliott p style=sobre os judeus serem descendentes da tschandala indiana, ou essa teoria teria lhe oferecido apenas uma renovada forma de se interpretar o “instinto judaico”? Na carta a Peter Gast, ainda que só aparentemente, é a primeira alternativa que se sobressai:

Confesso a impressão de que tudo o que tivemos até agora dos grandes códigos morais parece, para mim, uma imitação e mesmo uma caricatura deste último: sobretudo o egipcismo; mas mesmo Platão me parece, em todos os pontos principais, ter sido simplesmente bem instruído por um brâmane. Os judeus aparecem em tal contexto como uma raça tschandala, que aprendeu de seus senhores os princípios sob os quais uma ordem sacerdotal ascende ao poder e organiza um povo. Os chineses também parecem ter produzido seu Confúcio e Lao-Tsé sob a influência desse código clássico muito antigo. A organização medieval parece um curioso tatear para restaurar todas as idéias sobre as quais repousava esta muito antiga sociedade indo-ariana – mas com os valores pessimistas provenientes do solo da décadence das raças. Aqui também os judeus aparecem como meros “mediadores” [„Vermittler“] – eles não inventaram nada.

Em outros momentos, todavia, Nietzsche se mostra muito mais cauteloso quanto a essa ascendência tschandala dos judeus. Ao que parece, a “tschandala” descrita na obra de Jacolliot vai lhe interessar muito mais como modelo de um conglomerado de degenerados no interior de uma sociedade, muito próximo daquilo que Féré anuncia, ou seja, o surgimento de sujeitos degenerados é o resultado natural de toda civilização, e a tendência natural desses sujeitos é exatamente se buscarem, se juntarem, procriarem entre si, formando mesmo um “estrato” à parte, o que conduzirá inevitavelmente à sua extinção. Esse quadro desperta o interesse de Nietzsche, pois, segundo ele, foi em semelhante ambiente que o cristianismo surgiu:

O movimento cristão é um movimento de degenerescência feito de todo tipo de elementos de detritos [Abfalls] e refugos [Ausschuss]: ele não exprime o declínio de uma raça, ele é desde o início uma formação agregada [Aggregat-Bildung] de estruturas de doenças [Krankheits-Gebilden] que se juntam e se buscam... E, por isso, ele não é nacional, não é ligado a uma raça: ele se endereça aos deserdados de toda parte. [38]

A definição de tschandala como um esgoto mesmo da civilização é que vai, pois, despertar o interesse de Nietzsche, tornando-se um instrumento pelo qual ele vai interpretar a sociedade judaica da diáspora como um mundo da degenerescência, cuja principal conseqüência foi o cristianismo, não que os judeus um dia tenham sido verdadeiramente parte da tschandala indiana, e sim que eles tenham exercido o papel de tschandala no interior do Império Romano. Como parece sugerir o final do fragmento 14 [190] da primavera de 1888, intitulado “O problema dos oprimidos”:

Eu não tenho certeza se [Ich sehe nicht ab, ob] os semitas já não estiveram, em um tempo muito remoto, sob a terrível opressão dos hindus: como tschandala, uma vez que já nessa época estavam enraízados alguns de seus traços característicos, que pertencem ao tipo de homem servil e desprezado (– como mais tarde no Egito). Posteriormente, eles se enobreceram, na medida em que eles se tornaram belicosos... E conquistaram suas próprias terras, seus próprios deuses. A formação dos deuses semitas coincide historicamente com sua entrada na história. O ‘espírito’, a paciência obstinada, o comércio desprezado. A definição oficial de tschandala é exatamente aquela de uma dejeção, de um excremento das classes superiores. [39]

Outro elemento que marca bem a distância da interpretação que Nietzsche faz do judaísmo como tschandala com relação às convicções de Jacolliot, está no fato de que, para o filósofo, nem todo judaísmo representa uma tschandala, porquanto ele é constituído por uma classe sacerdotal... e a tschandala, ou seja, sem classes intermediárias. O que esclarece muito porque o cristianismo é a sua conseqüência lógica. No fragmento póstumo 14 [223] da primavera de 1888, Nietzsche afirma que, após o exílio babilônico, os judeus se viram “amputados”, sem uma classe guerreira e sem uma classe agricultora, tudo o que restou foram os sacerdotes e a tschandala. Como, anteriormente, durante o Reino, os sacerdotes não detinham o poder (que pertencia ao rei, ao guerreiro, ao nobre), a religião que agora eles iriam fundar, para sancionar sua inédita posição enquanto classe superior hegemônica (Wellhausen), seria baseada essencialmente na hostilidade contra a aristocracia, contra o poder, contra o privilégio, contra as classes dominantes, fomentando, assim, na tschandala, o pessimismo da indignação, tal pessimismo, na verdade, constituía o próprio baluarte do poder sacerdotal: “Com isso eles criaram uma importante nova posição: o sacerdote à frente da tschandala – contra as classes aristocráticas...” [40] Todavia, esse mesmo pessimismo da indignação que era a fonte do poder sacerdotal trouxe como resultado inevitável o surgimento do cristianismo, que viu no sacerdote a última representação do poder, da nobreza, do privilégio de classe: “o cristianismo extraiu as últimas conseqüências desse movimento: no sacerdote judaico ele sentia ainda a casta, o privilégio, o aristocrata –  ele suprimiu o sacerdote –” [41] Foi dessa tschandala, no interior do judaísmo [42], “conclamada” por Jesus, esse santo anarquista, contra a ordem dominante [43], isto é, contra o sacerdote, que o cristianismo surgiu, mas, pode-se dizer também que foi essa mesma aglomeração de degenerados no interior do judaísmo sacerdotal que possibilitou que santos idiotas pululassem em tal ambiente.

Será que a arbitrariedade e a ausência de rigor da tradução de Jacolliot, bem como a total falta de seriedade científica de sua tese comprometem definitivamente os argumentos de Nietzsche? Talvez essa questão se dissolva quando se procura verificar como e com que intenção o filósofo faz uso do que ele chama de “o Código de Manu”, em outros termos, o que importa é ver como o filósofo se apropria dessa visão que a obra de Jacolliot desenvolve sobre o sistema de castas indiano, para expor o modo como o cristianismo ataca e condena a realidade, isto é, as condições naturais de efetivação da vida. Esse “Código de Manu” de Nietzsche ilustra qual a ordem natural das coisas, quais as leis naturais que regulam os diferentes tipos de vida, e qual o fim natural da décadence que os “valores modernos” querem impedir, ameaçando, com isso, a própria vida. [44] O “Código de Manu” de Jacolliot, lido em maio de 1888, confirma precisamente aquilo que Nietzsche tentou discutir no fragmento póstumo 10 [157] do outono de 1887, ou seja, a noção de que a moral judaica e cristã é antinatural. Esse código mostra que o destino natural da décadence é a sua dissolução, ele sanciona esse fenômeno como uma lei civil, entende, mesmo que de forma cruel e errônea [45], que tal fenômeno deve inclusive ser promovido, que se deve auxiliar a própria natureza nessa tarefa. [46] Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche se mostra particularmente interessado nas restrições alimentares e sanitárias que devem ser impostas à tschandala. [47] Tais medidas tinham como intuito exatamente acelerar o fim da tschandala que, segundo Jacolliot, acabou por se tornar uma sociedade à parte, bastante populosa e que poderia ameaçar a sociedade oficial. Essas medidas acabavam, portanto, por agravar a degradação de um condicionamento fisiológico já seriamente debilitado por conta das próprias condições de existência a que a tschandala se encontrava submetida no interior da sociedade indiana. A tschandala parece representar, assim, uma delimitação social regulamentada por lei da porção degenerada da sociedade, de seus dejetos e detritos. Ou seja, a sociedade hindu, idealizada por Nietzsche, seria aquela que admitiria para si mesma que o seu bom funcionamento depende da produção regular de resíduos e, mais importante, da separação desses resíduos da parte sadia da população. Uma mentalidade que se aproxima de maneira surpreendente das principais conclusões de Féré.

tschandala não é nenhuma raça. A tschandala é uma aglomeração de degenerados, dos restos, das sobras, dos excrementos, dos dejetos de uma civilização. A “tschandala indiana” de Nietzsche é uma aglomeração não mais apenas natural de toda sorte de degenerados, mas imposta mesmo pela classe superior da sociedade, exatamente porque o “Código de Manu” venera o natural e o erige como lei a fim de cultivar uma classe superior.  Como diz Nietzsche:

A noção de tschandala exprime os degenerados de todas as castas: os excrementos constantemente rejeitados [de Auswurfstoffe in Permanenz], que não cessam de se reproduzirem entre eles; contra eles fala o mais profundo instinto da saúde de uma raça. Ser duro aqui é sinônimo de ser “são”: é o desgosto diante da degenerescência, que acha aqui uma quantidade de fórmulas morais e religiosas... [48]

Na natureza, observa-se a produção regular e necessária de seres degenerados como parte da efetivação da vida; a vida não pode prescindir da degenerescência, esse fenômeno pertence necessariamente a ela como condição de superação. [49] Entretanto, o processo degenerativo tem como fim a dissolução da própria degenerescência. A moral da compaixão propalada pelo cristianismo e pelos “valores modernos” ameaça seriamente a vida quando busca conservar a degenerescência a todo custo, fazendo com que ela se propague e predomine como única forma de vida existente. O mito nietzschiano do “Código de Manu”, do sistema de castas indiano, da tschandala, tem como função ilustrar exatamente essa realidade: “Os fracos e malogrados devem perecer: primeiro princípio de nosso amor aos homens. E deve-se ajudá-los nisso.” [50] Desnecessário é, dado todo o avanço atual da Nietzsche-Forschung, alertar para todo o cuidado que se deve ter com a retórica nietzschiana em tal passagem, deve-se ressaltar apenas que a tese fundamental aqui exposta gravita em torno da noção de que a compaixão para com a décadence é prejudicial à vida, que o objetivo último da vida não é a sua conservação, mas a sua superação; que a dissolução natural da degenerescência não deve ser evitada, impedida, sabotada, mas, quem sabe, facilitada. Por conseguinte, ao chamar o mundo em que Jesus habitou, o judaísmo da diáspora, de mundo tschandala, Nietzsche não está tão interessado em expor uma verdade científica, mas sim muito mais em salientar por qual forma de vida este mundo era constituído, ou seja, a degenerescência, e que tipo de interesse de vida prevalecia ali, isto é, o pessimismo da indignação, contra a ordem, contra a hierarquia, contra a casta, contra o privilégio. Porém, essa forma de vida, a degenerescência, também condicionou o nascimento dos santos idiotas, e, com isso, um novo interesse de vida foi despertado, aquele do “fatalismo russo” [51], que vê na não resistência, na aceitação de sua própria dissolução, a única forma de se alcançar a bem aventurança. Entretanto, aquele outro interesse de vida, o do pessimismo da indignação, da revolta, enfim, do ressentimento, prevaleceu e interrompeu esse processo, com o movimento que Paulo, o ódio tschandala a Roma feito carne [52], perpetrou.

Embora de maneira arriscada e reducionista, poder-se-ia levantar a hipótese de que o instinto de vida judaico que brota diretamente da puberdade interrompida, da idiotia, do mundo privado, da incapacidade de luta, seja aquele representado fundamentalmente pela Galiléia (a pequena família judia da diáspora, como diz Nietzsche), ambiente em que o idiota Jesus nasce, e, em contrapartida, o instinto de vida judaico que brota diretamente do ressentimento, do pessimismo da indignação, da revolta contra o privilégio, seja aquele representado eminentemente por Jerusalém, ambiente em que o cristianismo nasce. Ambos seriam instintos próprios de uma forma de vida declinante, de formas de existência parasitária, da tschandala, ainda que apresentem objetivos essencialmente diferentes: enquanto um representa a aceitação de sua própria constituição, outro representa a negação, enquanto um aguarda com alegria a extinção, outro busca a conservação. Talvez a influência malsã do poder sacerdotal “à frente da tschandala”, e que “toma partido de todos os instintos da décadence – não como se fosse por eles dominados, mas porque neles adivinhou um poder”[53], seja o fator decisivo para que o ressentimento se torne mais predominante em Jerusalém, ao fomentar nos deserdados, baixos e excluídos, o pessimismo da indignação. Tal hipótese indicaria também um ponto de proximidade entre as teorias de Renan e as de Nietzsche. Para Renan, foi esse “ressentimento” que predominava em Jerusalém que fez com que o caráter de Jesus se alterasse radicalmente até que ele atingisse os seus “sublimes paradoxos”. [54]

 
 

[1] Doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo, Brasil. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

[2] Cf. Wellhausen, Julius. Prolegomena zur Geschichte Israels. Berlin: G. Reimer, 1883, [BN].

[3] Cf. Féré, Charles. Sensation et mouvement: études expérimentales de psycho-mécanique. Paris: Félix Alcan, 1887. E também: Féré, Charles. Dégénéréscence et criminalité : Essai physiologique. Paris: Félix Alcan, 1888, [BN].

[4] Tolstoï, Léon. Ma Religion. Paris: Libraire Fischbacher, 1885.

[5] Cf., nesse sentido, Sommer, Andreas Urs. Friedrich Nietzsches “Der Antichrist”. Ein philosophisch historischer Kommentar. Basel: Schwabe & Co. Verlag, 2000, pp. 288-289.

[6] Cf. Renan, Ernest. Vie de Jésus. Paris: Calman Lévy, 1883. A primeira edição dessa obra foi em 1863, porém Renan publicou em 1867 uma edição melhorada e muito ampliada, que foi a que Nietzsche utilizou. Embora Nietzsche já conhecesse Vie de Jésus de Renan desde 1885, foi na primavera de 1888 que ele fez um estudo intensivo dessa obra. Mesmo quando a obra é datada como sendo a primeira edição de 1863, foi a 13ª edição “revue et augmentée” que Nietzsche da fato leu. Como comprovou Giuliano Campioni em Nietzche-Studien 21 (1992), p. 404 e Nietzsche-Studien 24 (1995), p. 402. Sobre as datas de emissão dessa 13ª edição, cf. Antonio Morillas, Nietzsche-Studien 35 (2006), p. 301, nota 1.

[7] Fundamental para essa discussão é a tentativa feita por Nietzsche nos fragmentos póstumos 10 [92] e 10 [181] do outono de 1887, de demonstrar a tese de que a vida ideal proposta pelo cristianismo de Paulo é a vida representada pela pequena família judaica da diáspora e não pela sua classe reinante; a vida “dessa espécie de gente pequena [kleine Leuten] absolutamente não política e mantida afastada” (FP 10 [181] do outono de 1887).

[8] Cf. Nietzsche, Friedrich. O Anticristo: maldição ao cristianismo / Ditirambos de Dionísio. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, § 38. Doravante AC..

[9] Esse tema terá seu desenvolvimento mais acabado em CI, “Moral como antinatureza”.

[10] Cf. Nietzsche, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, “Moral como antinatureza” § 1. Doravante CI.

[11] FP 10 [157] do outono de 1887.

[12] Ibidem.

[13] Cf. FP 15 [37] e 15 [41] da primavera de 1888.

[14] “A PRESSUPOSIÇÃO PSICOLÓGIA: a ignorância e a incultura, a ignorância que desaprendeu todo pudor: a ausência total de objetivos, de tarefas reais pelas quais se requer outros meios além da costumeira beatice, – o Estado os dispensa desse trabalho; o impudente povo não fez por menos, como se dele não precisassem.” (FP 10 [199] do outono de 1887)

[15] Jacolliot, Louis. Les législateurs religieux: Manou – Moïse – Mahomet: Traditions religieuses comparées des lois de Manou, de la Bible, du Coran, du rituel égyptien, du Zend-Avesta des Parses et des traditions finnoises. Paris: A. Lacroix, 1876.

[16] Colli, KSA 13, p. 667.

[17] Cf. os fragmentos póstumos: 14 [106], 14 [175], 14 [176], 14 [177], 14 [178], 14 [191], 14 [190], 14 [192], 14 [195], 14 [196], 14 [198], 14 [199], 14 [200], 14 [202], 14 [203], 14 [204], 14 [201], 14 [213], 14 [214], 14 [215], 14 [216], 14 [217], 14 [218], 14 [220], 14 [221], 14 [224], 14 [223], 15 [24], 15 [62] da primavera de 1888.

[18] Sinais de leitura no exemplar pessoal de Nietzsche: pp. 4, 95, 98, 126, 138, 249, 250, 257, 261, 275, 292, 293, 342, 357, 364, 365, 366, 392, 393, 396, 397, 400, 402, 416, 423-430, 432, 433, 438-441, 455, 462-471, 473-475, 477, 478. Cf. Campioni, Giuliano; D’Iorio, Paolo et allii. (Herausgegeben). Nietzsches persönliche Bibliothek (BN). Supplementa Nietzscheana, Band 6. Walter de Gruyter: Berlin, New York: 2003. O fac-símile do exemplar pessoal de Nietzsche encontra-se disponível no site da Fundação Clássicos de Weimar, no endereço:< http://ora-web.swkk.de/digimo_online/digimo.entry?source=digimo.Digitalisat_anzeigen&a_id=15698 >.

[19] Cf. KSB 8, p. 325.

[20] CI, Os “melhoradores” da humanidade § 3.

[21] Cf. AC § 56.

[22] Cf. CI, Os “melhoradores” da humanidade § 2.

[23] AC § 57.

[24] AC § 58.

[25] “É impossível não comparar o código de leis indiano com o cristão: não há melhor maneira de se convencer intimamente daquilo que há de imaturo e de diletante em toda a tentativa cristã.” (FP 15[24] da primavera de 1888).

[26] Outro trabalho digno de nota é o de Thomas Brobjer, “The Absence of Political Ideals in Nietzsche’s Writings: The Case of the Laws of Manu and the Associated Caste-Society”. In: Nietzsche Studien. Berlin, New York: Walter de Gruyter, Band 27, 1998. Brobjer se esforça em mostrar que o Código de Manu de maneira alguma corresponderia a um ideal político que Nietzsche se propôs a defender como parte integrante de seu projeto filosófico, visto que, entre outros motivos, Nietzsche considera tal código como uma “mentira sagrada”, da mesma natureza que o cristianismo e a visão política de Platão, além disso, tal código não procura criar nada de novo, mas somente sancionar uma longa experiência de vida de uma sociedade.

[27] Cf. Etter, Annemarie. “Nietzsche und das Gesetzbuch des Manu”. In: Nietzsche Studien. Berlin, New York: Walter de Gruyter, Band 16, 1987.

[28] Elst, Koenraad. “Manu as a Weapon against Egalitarianism: Nietzsche and Hindu Political Philosophy”. In: Siemens, Herman W.; Roodt, Vasti (Ed.). Nietzsche, Power and PoliticsRethinking Nietzsche’s Legacy for Political Thought. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2008.

[29] Cf. Jacolliot, Louis. Les législateurs religieux, pp. 98-120.

[30] Jacolliot, Louis. Les législateurs religieux, p. 98.

[31] Jacolliot, Louis. Les législateurs religieux, p. 102.

[32] Nietzsche cita primeiramente um edito lançado no segundo momento em que se tomou medidas contra a tschandala, sob o reinado do artaxchatria Agastya, mais precisamente o terceiro edito de um total de três (o artaxchatria Pratichta lançou somente um, o Arta, “ato justo”): “Talvez nada contrarie mais nossa sensibilidade do que essas medidas de proteção da moral indiana. O terceiro edito, por exemplo (Avadana-Sastra I), o ‘dos vegetais impuros’, decreta que a única alimentação permitida aos tschandalas seja alho e cebola, visto que as escrituras sagradas proíbem dar-lhes cereais ou frutos que contenham grãos, ou água, ou fogo. O mesmo edito estabelece que a água que necessitam não pode ser retirada dos rios, nem das fontes ou dos lagos, mas somente das vias de acesso aos pântanos e dos buracos deixados pelos pés dos animais. Igualmente lhes é proibido lavar roupa e lavar a si mesmos, pois a água que lhes é concedida graciosamente pode ser usada apenas para matar a sede. Por fim, há a proibição de as mulheres sudras assistirem as mulheres tschandalas no parto, e também de essas últimas assistirem uma a outra...” (CI, Os “melhoradores” da humanidade § 3). « Le troisième, appelé karana-munkundakaya, l’édit sur les légumes impurs, ‘Ordonne que la seule nourriture qu’il sera permis de leur donner consistera en ail et oignons (munkundaka, oignons), les livres sacrés défendent qu’il soit donné aux tchandalas ni grains, ni fruits portant grains, ni feu ni eaux.’ (Avadana-Sastra, 1ª partie.) La même ordonnance porte : ‘Qu’ils ne pourront prendre de l’eau pour leur subsistance, ni dans les fleuves, ni dans les sources, ni dans les étangs, mais seulement aux abords des marécages et des abreuvoirs, et dans les trous faits dans la vase par les pas des bestiaux.’ Défense fut faite également : ‘De laver leur linge et de faire leurs ablutions, l’eau croupie, qui leur était concédée, ne devait être employée qu’à éteindre leur soif.’ Il fut interdit aux femmes soudras d’accoucher les femmes tchandalas, et à ces dernières de s’aider entre elles, etc... (Avadana-Sastra, 1ª partie.) » (Jacolliot, Les législateurs religieux, pp. 106-107). É somente em seguida que Nietzsche cita o edito lançado no primeiro momento, sob o reinado do artaxchatria Pratichta: “– O próprio Manu diz: ‘Os tschandalas são fruto do adultério, do incesto e do crime (– esta é a conseqüência necessária do conceito de cultivo). Eles só devem ter por vestimenta os farrapos dos cadáveres; por louça, vasilhames quebrados; por adornos, pedaços velhos de ferro; por culto religioso, somente os maus espíritos. Eles devem escrever da esquerda para a direita e servir-se da mão direita para escrever: o uso da mão direita e da escrita da esquerda para a direita é reservado aos virtuosos, às pessoas de raça”. (CI, Os “melhoradores” da humanidade § 3) « Manou a dit: les tchandalas naissent de l’adultère, de l’inceste et du crime. Ils ne peuvent avoir pour vêtements que les habits des morts, pour plats que des pots brisés, pour parure du fer, pour culte que celui des mauvais génies et qu’ils vaguent sans cesse d’un lieu à un autre.[…] Il leur est interdit de prononcer le nom de Brahma, l’être existant par lui-même, et le mystérieux monosyllabe, de lire, de copier et d’enseigner le Véda, d’écrire de gauche à droite, qui est le mode réservé aux hommes vertueux des quatre castes et pour la transcription de l’Ècriture sacrée. » (Jacolliot, Les législateurs religieux, pp. 102-103) Provavelmente Nietzsche se equivoca ao escrever “servir-se da mão direita para escrever”, quando o certo seria da “mão esquerda” como é dito por Jacolliot. Após a citação do edito do artaxchatria Pratichta, Nietzsche acompanha a narração de Jacolliot sobre o que resultou dos três editos lançados pelo artaxchatria Agastya: “– O resultado de tal policiamento sanitário não deixou de aparecer: epidemias assassinas, horríveis doenças venéreas e, depois, novamente a ‘lei da faca’, prescrevendo a circuncisão dos meninos e a remoção dos pequenos lábios das meninas.” (CI, Os “melhoradores” da humanidade § 3) « Le premier résultat de ces atroces dispositions que l’Avadana-Sastra signale, fut amené par la défense faite à ces malheureux de procéder à aucune ablution corporelle. En peu de temps, presque tous ces malheureux furent atteints de plaies purulentes aux parties génitales. Comme en cet état ils ne pouvaient travailler, Agastya rendit l’ordonnance appelée karana-nistrincaya, l’édit du couteau, par lequel: ‘Tout homme et tout enfant mâle en naissant furent astreints à la circoncision, et toute femme dut subir l’ablation des petites lèvres vaginales...’ (Avadana-Sastra, 1er partie). » (Jacolliot, Les legislateurs religieux, pp. 107-108).

[33] « A l’époque des luttes brahmaniques et bouddhistes, environ quatre mille ans avant notre ère, pris entre des ennemis aussi acharnés contre eux les uns que les autres, les tschandalas, au rapport de l’Avadana-Sastra: ‘Emigrèrent en foule par le pays du Sind et d’Aria (Iran) avec leurs troupeaux, route qu’avaient déjà parcourue Harakala et ses guerriers...’ Comme on le voit, c’est le chemin de l’Euphrate et du Tigre, le chemin de la Chaldée et de la Babylonie. » (Jacolliot, Les législateurs religieux, p. 109).

[34] « En présence de toutes ces preuves, il n’est pas contestable que cette foule mêlée dont parle Eschyle, cette multitude d’hommes de diverses nations, parlant des langages différents, et unis cependant par les mêmes mœurs et les mêmes croyances religieuses, qui, selon le chaldéen Bérose, vinrent coloniser la Chaldéo-Babylonie, ne soient partis de l’Inde aux époques signalées par les traditions de l’Avadana-Sastra. [...] L’Égypte fut la seule de ces contrées qui fut colonisée par les castes élevées de l’lndoustan, aussi son état social, ses croyances, son culte, ses traditions furent-ils de simples reproductions, des copies des usages de la mère-patrie. Mêmes influences sacerdotales, mêmes divisions de castes, même impossibilité d'en sortir, même droit pénal qui, comme dans l’Inde, produisait cette foule de décastés et de mêmes peuples qui, ainsi que le constate la Bible, s'enfuirent de l’Égypte avec les Hébreux. [...] Les habitudes de l’esclavage, de l’isolement, la privation des femmes souvent imposée aux tchandalas pour arrêter le développement de la race, avaient fait naître chez eux des vices contre nature que Sodome et Gomorrhe n'eurent pas seules en partage, car tous les peuples dits sémitiques en furent et en sont encore infectés. Ces ignobles et dégradantes coutumes sont considérées avec horreur dans l’Inde comme des vices de pariahs, et on n'a pu les remarquer chez les nations européennes qu'à titre d'exception. » (Jacolliot, Les législateurs religieux, pp. 118-119).

[35] Jacolliot, Les législateurs religieux, p. 114.

[36] Cf. AC § 57.

[37] CI, Os “melhoradores” da humanidade § 4.

[38] FP 14 [91] da primavera de 1888.

[39] FP 14 [190] da primavera de 1888.

[40] FP 14 [223] da primavera de 1888.

[41] Ibidem.

[42] AC § 27.

[43] Pelas razões expostas mais acima, sustentamos que a afirmação de Nietzsche de que Jesus “conclamou o povo baixo, os excluídos e ‘pecadores’, a tschandala no interior do judaísmo, a contrariar a ordem dominante” (AC § 27), possui caráter meramente provisório, uma hipótese argumentativa, que, com o desenvolvimento da investigação do tipo “Jesus”, mostrar-se-á ilusória. Esse atributo “revolucionário” é incongruente com o tipo de Jesus, e só pode ser levado em consideração quando se tem em vista o modo como este “santo anarquista” seria interpretado pelo Império Romano ou por uma sociedade política qualquer, ou seja, de acordo com um discurso que estaria falseando essa realidade segundo suas próprias necessidades.

[44] “A ordem das castas, a lei suprema, dominante, é apenas a sanção de uma ordem natural, de leis naturais de primeira categoria, sobre as quais nenhum arbítrio, nenhuma ‘idéia moderna’ tem poder [...] A ordem das castas, a hierarquia, apenas formula a lei maior da própria vida, a separação dos três tipos é necessária para a conservação da sociedade, para possibilitar tipos mais elevados e supremos – a desigualdade dos direitos é a condição para que haja direitos.” (AC § 57)

[45] Em CI, “O problema de Sócrates” § 11, Nietzsche afirma que “toda a moral do melhoramento [...] foi um mal-entendido...”

[46] Cf. AC § 2.

[47] Cf. CI, Os “melhoradores” da humanidade § 3.

[48] FP 14 [224] da primavera de 1888.

[49] “O conceito de décadence – Os detritos, os escombros, os desperdícios não são algo que se deva condenar em si: são uma conseqüência necessária da vida, do crescimento da vida. O fenômeno da décadence é tão necessário como qualquer elevação e avanço da vida: não está em nossas mãos eliminá-lo. A razão quer, pelo contrário, que à décadence se outorgue o direito... É um opróbrio para todos os sistemáticos e socialistas os que opinam que poderia haver circunstâncias, combinações sociais, em que o vício, a enfermidade, o crime, a prostituição, a indigência, já não poderiam mais se desenvolver... Mais isso significa condenar a vida... Uma sociedade não é livre de continuar sendo jovem. E no meio de sua maior força, tem que produzir detritos e dejetos. Quanto mais enérgica e audaz proceda, tanto mais abundante será em monstros e abortos, tanto mais cercada estará de declínio... A velhice não se elimina com instituições. Tampouco a enfermidade. Tampouco o vício.” (FP 14 [75] da primavera de 1888)

[50] AC § 2.

[51] Cf. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, “Por que sou tão sábio” § 6.

[52] Cf. AC § 57.

[53] Cf. AC § 24.

[54] Cf. Renan, Vie de Jésus, chap. XIX.